sexta-feira, 19 de junho de 2009

Não tem mais leite em pó (ou um problema de visão)

Ao longo do artigo anterior, que serve de introdução ao tema deste, o leitor menos atento poderá ficar persuadido de que estou defendendo a anarquia nas organizações, a morte da hierarquia, ou alimentando qualquer nova filosofia de rebeldia esclarecida por parte dos executivos. Nada disso.

Com efeito, toda estrutura humana necessita de uma organização e de uma estrutura de atribuição de responsabilidades; o que pode não necessitar, é de paradigmas e estruturas que foram gerados em épocas que já sumiram no túnel do Tempo, e que a eles estavam adaptadas; por exemplo: apenas um pensa e os outros executam. Se puder dizer-se que os modelos ditatoriais e autoritários desapareceram de nosso horizonte histórico, político e social, eles sobrevivem ainda em muitas organizações e nas práticas de gestão públicas e privadas.

Muito bem, essa introdução serviu de leitmotiv para firmar uma única certeza: a de que a ampulheta de Chronos deu mais uma volta sobre seu eixo milenar, e que estamos em outros tempos, como os homens do emergente Renascimento europeu, na época – que não se identificavam com Maquiavel - , já haviam conscientizado e sentiam em relação à Idade Média, anunciando que uma outra época estava a caminho, como está patente naquele célebre soneto de Luís de Camões:

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o Mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Pode não parecer à primeira abordagem, mas o problema de visão que estou trazendo hoje como título de postagem relaciona-se com o paradigma Testa de ferro de um modo muito estreito. Há dias atrás, numa visita a uma empresa, deparei na sala de espera com uma daquelas máquinas automáticas de café expresso que servem uma beberagem com base em Nescafé, e não exatamente aquele cafezinho gostoso que conforta os dias de Inverno do sul catarinense. Mesmo ciente do fato, enquanto esperava, decidi pedir um café à maquininha; dirigi-me a ela e, quando o dedo já ia escolher a quantidade de açúcar e a opção da bebida deparei com uma folha A4 servindo de letreiro, colada sobre o visor e os botões de seleção, onde estava escrito: “Não use esta máquina – não tem mais leite em pó”.

Imediatamente, o meu cérebro começou a fazer as devidas associações automáticas, derivadas do conflito entre a pretensão ao prazer e a inibição dele; e, muito bem, deduziu que, se o problema era leite, não haveria necessariamente um problema, visto que o café que eu pretendia tomar era café preto. Café preto não precisa de leite em pó. O letreiro dizia para não usar a máquina, mas a máquina oferecia dois tipos de café preto, chá e, claro está, café com leite. Portanto, conferia: não fazia sentido não usar a máquina só porque não tinha leite em pó. Já decidido pela via da experimentação, na tentativa de ultrapassar a aparente inibição, tirei um copo, coloquei-o no lugar, levantei a inibidora folha A4 que se encontrava de advertência, cliquei minha seleção nos botões e, entre ansioso e curioso, esperei o que iria passar-se a seguir. Nada de mais: o cafezinho saiu para o copo, tranqüilo, todo normal, como em qualquer outra máquina onde não existe letreiro.

As reflexões sobre este episódio podem ser mais ou menos explícitas ou prolongadas. Porém, no âmbito da gestão das organizações, elas são muito ricas, justamente, como fonte de reflexão. Em primeiro lugar, fica logo claro que a visão do funcionário ou funcionária que escreveu o letreiro é incapaz de transportar-se de sua escala para outra: seus interesses pessoais não conseguem visualizar os interesses dos demais. O negócio dessa pessoa, no que respeita bebida de máquina automática, é café com leite, e esse é seu mundo: não existe outra opção. Poderá deduzir-se, talvez sem muita margem para erro, que essa pessoa reproduzirá esse modelo mental em tudo o que ela faz. O mundo tem o tamanho e a forma de seu mundo sensorial.

Semelhante padrão é humano, é comum até; mas, felizmente, não é, nem universal, nem definitivo. Toda visão individual sobre o mundo identifica o mundo com seu horizonte individual; mas qualquer visão humana também pode mudar, erguer-se de seu pequeno mundo a um mundo mais largo; desde que se torne ciente que tem qu emudar. Assim, uma pessoa com visão larga, profunda, ampla, tende a observar o mundo e a agir com maior profundidade e amplitude, mais antenada com a realidade. Por seu lado, uma pessoa com visão curta e estreita vai dimensionar o mundo dentro de sua dimensão: pior ainda, se essa pessoa está em condições de liderar outras, sua organização, suas opções, suas decisões vão ser enquadradas num limite estreito: essa organização vai passar pelo crivo do risco.

No que diz respeito às necessidades das organizações em executivos, obviamente que os tempos de hoje, que são tempos complexos e com múltiplas variáveis em múltiplas camadas, que se associam e dissociam com grande rapidez e volatilidade, ninguém deveria contratar alguém para semelhante cargo com uma visão do tipo “Não tem mais leite em pó”. Mas ainda acontece justamente o contrário. O elevado índice de empresas e investimentos, grandes, pequenos e médios, que não dão certo, está radicado, em grande medida, em visões curtas e estreitas demais para a real dimensão do mundo, dos negócios, do mercado, do conhecimento, e assim por diante.

Certos líderes e decisores tomam o mundo real à medida de seu pequeno mundo e agem como se o mundo, o mercado, o potencial possível fosse apenas esse, o de sua visão. Por isso, e muito menos por causas externas, muitos investimentos e novos projetos não dão certo. Pior ainda, se forem políticos, que seriam os responsáveis pela administração da causa pública; infelizmente, políticos não são administradores, nem mesmo maus administradores – não será exagerado considerar, até, que a maior parte dos políticos profissionais não sabe o que é administrar; sua visão está focada apenas em interesses pessoais e no impacto de seu exibicionismo junto de uma clientela política cada vez mais cética.

Portanto, i
nvestidores, empresários e gestores que não se tocam para os limites de seu pequeno mundo pessoal, também não têm a noção do valor dos produtos e serviços de suas organizações para os próprios clientes: eles pensam que o negócio é vender o que eles querem vender, não necessariamente o que os clientes potenciais realmente valorizam e estão interessados em comprar. Eles acham, como os antigos comerciantes, que os clientes precisam deles, são dependentes deles, quando é exatamente o contrário que se passa: são eles que são dependentes do mercado. E as empresas fecham, fecham e fecham. Pura e simplesmente, em muitos casos, o empresário não tem noção do gap entre sua visão pessoal e a amplitude do mundo real.

Então, quando as organizações são levadas a definir ou a rever suas declarações de Missão, Visão e Valores, elas não executarão bem a tarefa se estiverem presas no paradigma “Não tem mais leite em pó”. Justamente, porque o que está em causa pode ser café preto, ou chá, quando a visão apenas enxerga café com leite. A visão de quem decide numa organização deve encontrar-se muito além do negócio, do setor em que atua, da quadra, do bairro, da cidade, da região. E do pasto das vacas sagradas. Por isso o grupo “Management renegade brigade” do qual fazem parte Hamel, Senge, Mintzberg, Argyris e muitos outros, insiste na visão sistêmica da organização, dentro e fora dela. Cada vez mais, uma visão empresarial ou organizacional curta, estreita e estática é um sério fator de risco para ela mesma.

Gestores, técnicos, decisores, devem ser selecionados mais pela amplitude de sua visão de mundo do que por seu currículo técnico ou por seu grau de confiança pessoal com quem os contrata. Pessoas de confiança pessoal são sempre necessárias nos altos cargos, mas não são necessariamente os melhores conselheiros, os melhores decisores, os melhores empreendedores internos na organização. Políticos escolhem pessoas de confiança, mas freqüentemente vocacionados para cargos do tipo testa de ferro. A prospecção e seleção de gestores, técnicos superiores, decisores ou futuros decisores deve, portanto, seguir um balanceamento, um equilíbrio adequado de critérios, dentro dos quais a capacidade de visão de mundo e do negócio dentro e fora de seu contexto deve estar logo em primeiro lugar ou muito perto dele.

Quando não tem mais leite em pó, é sempre bom ter alguém que prefere café preto e que levante um tabu para que a máquina funcione, quando parecia não funcionar. Aliás, as grandes descobertas da Humanidade foram feitas desse modo, desafiando e quebrando tabus e paradigmas, aceites por quase todos como proibidos ou imutáveis. E raras vezes o foram por acadêmicos. Coincidência? Mas essa seria outra conversa.

Nenhum comentário: