terça-feira, 26 de maio de 2009

Estratégia e Pessoas

Uma das crenças ainda vivas, próprias da administração da Revolução Industrial, consiste em acreditar que as empresas e organizações em geral podem ser gerenciadas através de técnicas, tecnologias e modelos teóricos. Cadê as pessoas? Na realidade, tecnologias, técnicas e modelos são criados por pessoas, para outras pessoas gerenciarem recursos materiais, financeiros, tecnológicos, intelectuais. De todos estes, nenhum funciona sem pessoas. Logo, são as pessoas que fazem e operacionalizam as estratégias. Esse detalhe, aliado à complexidade e sofisticação dos recursos implica uma virada completa no conceito de “capital”, conforme Peter Drucker antecipou há trinta anos atrás. O capital mais importante no contexto contemporâneo é o capital intelectual. Sobretudo, capital intelectual inteligente. Se não for inteligente, não é capital. Sendo inteligente, possui igualmente sua face emocional e afetiva, sobretudo no que diz respeito ao relacionamento e a outros fatores com base nas emoções. Isto, porque acumular conhecimento não é o mesmo do que ser inteligente. Conhecimento é recurso, inteligência é o que faz mover a pedra.

Em nossa época de consumo imediato, assim como novidades estão sempre emergindo no horizonte, também existem alguns temas e conceitos muito gastos em toda essa matéria relativa a Gestão Estratégica e seus derivados práticos e conceituais. O fenômeno é semelhante ao do mercado, de acordo com o ciclo de vida dos produtos: ele começa sempre com novos conceitos e seus nomes, interessantes, chamativos, criativos, inovadores. A moda é um paradigma significativo desse mecanismo. Depois dessa fase heróica, positiva, induzida pelos gurus, todo o mundo usa, e usa, e reusa mas… as novidades, os novos conceitos, vão perdendo lentamente o conteúdo original que lhes foi dado por seus autores; pouco a pouco, desvirtuam-se, banalizam-se perde-se o charme.

No meio acadêmico, menos sujeito à voragem de novidade do mercado, dá-se o mesmo fenômeno, mas com um ciclo de vida bem maior; aliás, perturbadoramente maior: docentes, pesquisadores e seus alunos ficam repetindo por anos e anos os mesmos autores, as mesmas frases, as mesmas citações, os mesmos modelos metodológicos, de tal forma que, o que seria originalmente Academia, passa a ser algo como Paraguai: o paraíso do clone, repetido e usado vezes sem conta, até encontrar-se completamente exausto. Vou poupar o leitor dos detalhes menos dignos, mas é surpreendente que, na Academia existam alunos e docentes – de notar que estes orientam aqueles – que não se apercebem que, na maior parte dos casos, o verdadeiro autor, que é um criador, e mais ainda se for um “guru”, renova-se permanentemente. Sim, porque um autor que se preze tem algo de artista plástico: acabou agora de pintar aquele quadro, e ele já não está legal, não satisfaz: ele começa buscando logo novos matizes, novas texturas, materiais, perspectivas, combinações, etc. - Será que ouvi algo semelhante sobre gestão estratégica?...

Por exemplo, o que um dado autor escreveu em 1980, especialmente na área da Gestão / Administração, já vai ser considerado por ele ultrapassado no ano seguinte, e daí em 1985, 1990, 2000, e assim por diante. Existem deduções que permanecem, claro, mas quando se fala em métodos, metodologias, modelos de gestão, fala-se em algo volátil, que se aprimora continuamente. Porém, na bibliografia de relatórios, artigos, TCCs, dissertações, etc., continuamos vendo citações de obras editadas em 1975, 1980, 1987... De 2000 para a frente, cada vez mais raro. Quando não, conceitos e modelos defasados da realidade dos dias de hoje. Dentro desses, existem realmente insights, idéias e produções que, apesar dos anos, não ficam gastos. Provavelmente, porque são algo arquetipais, ou foram muito bem visionados, como é o caso de uma parte importante do que produziu o autor do célebre The Practise of Management que, se hoje é um clássico e ainda surpreende, é porque seu pensamento estava vinte, trinta e mais anos à frente de seu tempo cronológico; ou, também, porque não ficaram na moda, sujeitas ao uso e abuso do consumo e, consoante os casos, do desvirtuamento da idéia original – por isso foram preservadas.

O resultado desse processo contínuo do novo-ôba-fala-usa-vende-gasta, é que existem palavras ou frases que não se podem ouvir mais: “Liderança”… já está meio chato falar de liderança, desde o mais técnico até ao mais místico conceito do termo, passando pelo líder servidor, bonzinho e quase santo. “Governança” é uma palavra muito feia, é cacofônica em nosso idioma; até porque ela não existe nem no melhor dicionário da língua portuguesa, e ninguém entende bem o que ela significa, embora seja um conceito belíssimo e ainda com muito gás para viver muitos anos: mas precisa de uma tradução melhorzinha em nosso idioma. “RH” já passou mesmo, mas ainda é útil e prático no cotidiano, sobretudo se ficar apenas nas iniciais; ele evoluiu para “Desenvolvimento humano e profissional”, que é interessante, mas parece coisa de mensagem de auto-ajuda, embora a intenção seja boa: enfatizar bem que pessoas não são recursos descartáveis, são pessoas mesmo. “Planejamento estratégico” pior ainda, porque os modelos clássicos caíram fora do contexto real dos dias de hoje, embora os membros da Academia – sobretudo os engenheiros que entraram no campo da Gestão – adorem e ainda tentemm perpetuá-los; e se o planejamento clássico já é muito chato, imagine-se quando se tenta encaixar um modelo certinho em cima. E assim por diante.

Tudo isto para falar algo que todo o mundo sabe, mas nem sempre tem coragem de admitir. Confunde-se muito Gestão na prática diária com Gestão na Academia, que é algo puramente teórico e obedece a outros interesses e motivações, que não os resultados das organizações. Justamente, porque as organizações, sobretudo se forem empresas, precisam de resultados e não apenas conversa dissertativa. Se retirássemos os modelos e metodologias a muitos técnicos e acadêmicos, eles ficariam algo como o bebê que deixou de sentir o seio cálido e generoso de mamãe… E, se os decisores organizacionais fazem com que seus técnicos e coordenadores dependam de modelos, e não de seu próprio pensamento e capacidade de criação face a uma dada situação real, poderão estar confundindo um interesse acadêmico com o interesse de melhores resultados na organização, que seria o seu. Apesar de Peter Drucker ter falado que não adianta transpor o melhor modelo de um livro ou autor para a realidade organizacional; para ele, “O melhor modelo é sempre aquele que funciona”, caso a caso, dentro de cada organização. Sábia afirmação. Por isso é que os melhores cursos de graduação, MBA e mestrados acadêmicos na área de Administração/Gestão usam professores com amplo currículo prático nas respectivas áreas: pessoas com experiência efetiva de mexer com pessoas, liderar pessoas, gerenciar pessoas que mexem com recursos materiais e buscam resultados.

Então, a melhor estratégia é feita por pessoas e para as pessoas que estão dentro da organização. Tecnologias e demais recursos dependem de pessoas para funcionar. Além disso, se começando pelos decisores, as pessoas em todos os níveis e áreas da organização entenderem a estratégia e a filosofia do pensamento estratégico, elas fazem acontecer as coisas dentro da linha certa, naturalmente, mesmo sem modelos. Por que? Porque já estão pensando estrategicamente. Se elas pensam estrategicamente, elas executam estrategicamente, operacionalizam estrategicamente, respiram estrategicamente. Pensar estrategicamente a organização implica atitudes estratégicas, porque não existe pensamento estratégico sem aplicação à realidade; ou seja: operar mudança. Não se trata de mudar tudo só por mudar, e porque é moda falar em mudança organizacional. Mas quanto menos engessado em modelos pré-definidos, melhor; a não ser para adaptar um dado modelo ou metodologia à realidade específica da organização; porém, sempre de um modo genuíno, criativo, com pensamento autônomo. Portanto, fazer gestão estratégica implica sempre mudança, e a ARS (arte) da mudança adequada, ponderada, bem pensada, é que vai confirmar a perfeição, ou não, do pensamento estratégico sobre uma dada realidade organizacional; e a capacidade de torná-lo operacional, para que produza resultados dentro dos objetivos pretendidos pelos decisores.

Desdobrando um pouco tudo isso, uma constatação que pode ser feita é a seguinte: processos não mudam nada, a não ser que sejam processos que vêm mudar (para melhor, é óbvio) os que já existiam; é a face estratégica da gestão de processos. E quem fala em novos processos, fala que estes devem estar alinhados pelo direcionamento estratégico da organização, ou seja, reforçando a cadeia de valor, nas pontas: cliente (mercado) ou usuário (ONG ou público), tanto importa. É por esse motivo que se diz há já algum tempo (Senge, por exemplo) que o pensamento estratégico é sistêmico: ele é circular e está sempre rodando em todas as direções em busca de imperfeições, questões, problemas, soluções, melhoramento. Como se dizia na Psicossociologia das Organizações nos anos 70 e 80, "visão circular, pensamento multivariante". Por isso é necessário que a maior parte dos atores institucionais pensem estrategicamente, não apenas os decisores e a diretoria de planejamento. O pensamento estratégico, por si mesmo, já constitui uma cultura organizacional. Mas processos não são tudo: e no que respeita aos projetos? É o mesmo: projetos que não estão alinhados pela estratégia de organização são como processos que não agregam nada à cadeia de valor: eles são uma fonte de custo e de desperdício de recursos preciosos. Estratégia, projetos e processos estão intimamente ligados: normalmente, projetos viram novos processos ou vêm aprimorar processos existentes; e estes devem ser monitorados permanentemente, porque, se deixam de estar alinhados estrategicamente, necessitam de novos projetos para reajustá-los, substituí-los ou simplesmente eliminá-los. E assim por diante.

Então, estratégia e pessoas é melhor do que estratégia e modelos de gestão estratégica. Vamos sofisticar agora: pensamento estratégico e pessoas funciona; modelos estratégicos (ou de planejamento estratégico) e pessoas nem sempre funciona. E por que? Porque só pessoas são capazes de analisar, pensar e mudar uma dada realidade. Modelos não pensam, nem refletem uma realidade específica: eles são genéricos e são resultados de processos mentais pré-estruturados a partir de formulações e testes realizados em organizações diferentes da sua, em lugares diferentes do seu, e em um tempo anterior ao seu. Sua realidade como gestor, coordenador, decisor, é o hoje, é o aqui e o agora, numa organização com uma identidade diferente de qualquer outra, e com um cenário de ambiente externo também distinto de outro caso qualquer. Portanto, para fazer algo parecido com gestão estratégica, precisa pensar estrategicamente e precisa fazer todo o time pensar estrategicamente em todos os quadrantes da organização; e esquecer aquela velha máxima da 1ª Revolução Industrial: “Empregado não é pago para pensar”. Se você pensa assim, não vai conseguir gerir estrategicamente sua organização nos dias de hoje. Se bem que… está certo, tem pessoas que não pensam mesmo; mas elas são assim, provavelmente, porque não foram habituadas a pensar e a considerar seu pensamento como algo útil num contexto coletivo.

Em conclusão, o negócio na gestão estratégica é, sem dúvida, pessoas, ou seja, colocar as pessoas a pensar, em primeiro lugar. Os modelos e metodologias vêm depois, quando aplicáveis. Precisa pessoas para discernir se são ou não aplicáveis à relaidade dessa organização. Só depois vêm os recursos tecnológicos, financeiros, patrimoniais, etc. Modelos teóricos não são pessoas nem pensam autonomamente; nem erram, porque se o modelo der errado, existe sempre o argumento “Sim, mas o modelo foi mal aplicado”. Quem o aplicou mal? Pessoas. Pessoas erram, mas também melhoram a si mesmas e o que fazem. Gestão, estratégia, liderança, usam e se aperfeiçoam com teoria, certamente, e até com filosofia, mais do que nunca; mas demandam intensamente experiência, prática diária, currículo efetivo no cotidiano das organizações, na resolução das situações e problemas mais diversos. Não esquecer o que falou o mestre Drucker: “Management is practise” – Gestão é prática. E não só: para uma boa prática precisa aprender a pensar além dos modelos, especialmente além dos conceitos que já se encontram completamente gastos. Não contra os modelos, mas além deles e além do pensamento alheio, mesmo que se trate do maior guru da Administração, ou da melhor consultoria internacional. "Ousar ir além" é um traço do que se chama hoje de Management 2.0 – uma outra lógica, outras abordagens, novas sinapses, numa outra época cujo capital fundamental passa a ser o conhecimento inteligente e a capacidade de relacionar-se construtivamente e sinergicamente com outras pessoas.

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